INÍCIOAPRESENTAÇÃOBIOGRAFIAOBRASNOTÍCIAS

 

A crítica de arte do nosso século se disperdeu muitas vezes em discursos literários verbosos desviando assim a visão geral e necessária da história que, como sempre acontece, condicionou e influenciou a vida artística da nossa época. A solidão interpretativa das sugestões figurativas, a não sociabilidade da arte em prol da própria arte liberada de esquemas burgueses e consumísticos que se tornam causas latentes e diretas, são as causas primárias, mas não as únicas, de uma arte fechada e cultural mente muito aristocrática. A vida e o itinerário artístico de Victor Brecheret é um caso típico desta situação.

 

Tenho notado que a critica européia tende a relegar a cultura dos artistas sul-americanos a uma espécie de nostalgia cultural dos longos períodos passados na Europa. Estes anos de vida européia, fundamentais sim para a formação mas que talvez sem os quais não tivessem existido me parece um grande racismo cultural. No traçado artístico de Brecheret, se assim o quisermos, encontramos sugestões que são de Duchamp, de Lipchitz, de Zadkine, de Boccioni e quem sabe quantos outros mais se existisse uma história da escultura no século XX, trabalho este ainda a ser realizado. Mas a este ponto deveríamos nos perguntar quanto pode ter frutado e influído por sua vez a presença de Victor Brecheret em Roma e Paris em anos tão importantes como os de seu período europeu que vai de 1913 a 1934. Nestes anos o encontramos ativo com exposições e obras que não podem deixar de ter causado alguma impressão. Neste mesmo laço de tempo que se realizam e se determinam os destinos figurativos do século XX, Brecheret deve ser incluído naquela cultura como intérprete que é e que não pode absolutamente ser esquecido ou, pior ainda, mal interpretado.

 

Assim sendo, seria curioso e importante recordar um episódio da sua vida: quando em 1917 morre Rodin, Brecheret se sente no dever de partir de Roma e ir até Paris para seguir o funeral do escultor. E como ele, esta homenagem deve ter sido feita por muitos escultores jovens daqueles anos que não podiam reconhecer em Rodin, como também em Medardo Rosso, um dos pais da escultura moderna apesar de todos aqueles limites que a crise figurativa das artes plásticas estava vivendo. Realmente não podemos nos esquecer que, seja Rodin que M. Rosso, como justamente observou Argan, "não chegam a reconstruir a forma plástica". Os motivos ideais que provocavam na escultura a representação do mito, de história e da alegoria ligada a uma moral política naufragaram definitivamente e com este naufrágio também os valores estéticos se deterioraram. O esforço de Rodin e de M. Rosso de qualquer modo serviram, na realização em termos plásticos da visão cromática luminosa instaurada a partir seja dos impressionistas que dos "macchiaioli", "a romper a concepção tradicional da relação entre forma plástica e espaço, mas não a renovar a estrutura da forma plástica" (Argan). É exatamente nesta crise de valores plásticos que deve ser lida a obra de Brecheret que sabe justamente encontrar a própria objetividade superando a quarta dimensão e o objeto em si mesmo através das formas primárias intimamente ligadas e conexas com a sua brasilidade, ajudado, como aconteceu com Arp e Moore, pelos elementos plásticos geométricos de Brancusi. Esta é uma grande prova de sensibilidade e inteligência criativa. Mas Brecheret sabe renovar também o seu classicismo ancestral em termos sócio-políticos na longa gestação do Monumento ás Bandeiras. Os motivos arcáicos que determinaram a escultura do século XX, além dos elegantes formalismos "Deco", permitem a Brecheret, como insistimos em dizer, a definição de sua brasilidade e a consciência da própria historicidade. Isto se demonstra justamente no que reputamos como uma das maiores obras-primas do nosso século, dedicado ao trabalho do homem, isto é, ao moderno Bandeirante sem os quais não existiriam cidades como São Paulo, que é o Monumento às Bandeiras onde a moralidade supera os limites da "figuratividade". Este enorme "mural" plástico, se nos permitíssemos esquecer por um momento de classificá-lo como tão simplesmente a maior escultura do mundo, é uma das mensagens sociais mais verdadeiras e palpitantes da arte sul-americana, a ponto de ofuscar a retórica temática dos murais de Siqueiros, e ao qual todos os trabalhadores-bandeirantes do mundo deveriam levar guirlandas de flores.

 

GIUSEPPE CANTELLl, professor de História da Arte' Medieval e Moderna do Instituto de História da Arte da Universidade de Estudos de Siena - Itália, in "Una casa com trecipressi in Rua João Moura in São Paulo: O Museu Victor Brecheret", de próxima publicação.

  

 

TRINTA ANOS DE UM MONUMENTO PELAS MÃOS DE BRECHERET

 

(Luiz Fernando Gama Pellegrini – SP Cultura – Ano I – n.º 4/5 – Novembro / Dezembro / 1982)

 

Um ano antes do quarto centenário da cidade, Victor Brecheret entregou-nos aquele que seria o seu maior e mais belo trabalho, e que ele ainda pode ver em vida – o Monumento ás Bandeiras, plantado no Parque Ibirapuera. Uma obra prima que teve de vencer inúmeros obstáculos para nascer.

 

25 de janeiro de 1953. Aparentemente, apenas mais uma data comemorativa do aniversário da cidade de São Paulo.

 

Exatamente há três décadas, na presença entre outros do governador Lucas Nogueira Garcez, de Guilherme de Almeida e de seu autor Victor Brecheret, inaugurava-se oficialmente o Monumento às Bandeiras, ali no Parque Ibirapuera.

 

Comumente, vincula-se a inauguração do Monumento aos festejos do IV Centenário da cidade de São Paulo, em 25 de janeiro de 1954, o que é um erro, aliás constante de muitos compêndios informativos.

 

Poucos sabem, mas a pedido do próprio Brecheret, que já não gozava de boa saúde, a inauguração do monumento foi antecipada para 1953, pois o artista queria entregar à cidade de São Paulo aquela que foi a sua obra maior, tendo dito: "Trinta anos me custou tudo isso. Quero ver o trabalho inaugurado logo, antes de morrer" (1) .

 

E poucas não foram as verdadeiras batalhas travadas por Brecheret, mormente quando era prefeito da cidade de São Paulo o Dr. Prestes Maia, que não propiciava os recursos financeiros mínimos e necessários para que a obra terminasse.

 

Dizem seus familiares que as desavenças eram de tal ordem com o então alcaide, que durante determinado período Brecheret proibiu sua entrada no galpão onde se encontravam os modelos.

 

Obra maior em todos os seus sentidos, consubstanciando toda a trajetória artística do escultor, haja vista que a perseguiu desde 1920, quando expôs na Casa Byngton a "maquete" primitiva, para que somente após 33 anos ocorresse a sua inauguração.

 

A história do Monumento às Bandeiras tem uma certa relação com as próprias "bandeiras", caracterizando-se por um espírito de luta muito grande, muita perseverança, coragem e pioneirismo.

 

E esses ingredientes estiveram igualmente presentes na árdua luta travada por Brecheret para a imposição da sua arte e, em específico, do próprio monumento, o que em verdade antecipou a sua morte.

 

É mister lembrar que a partir da década de 40 trabalhava não apenas o monumento, mas igualmente o Duque de Caxias, obra essa que não chegou a ver pronta. E suas dificuldades materiais eram de tal ordem, como dito anteriormente, que, certa feita, tendo que escalar os moldes em gesso do monumento, caiu da escada, o que quase lhe foi fatal.

 

A história do monumento tem seu início a partir de 28 de julho de 1920, quando na citada Casa Byngton, na rua XV de Novembro n.º 26, expõe a "maquete" primitiva.

 

Tratava-se de uma obra pioneira para a época, visto que Brecheret retornara em 1919 da Europa, após uma permanência de seis anos em Roma, trazendo consigo as influências da época.

 

Apresentada a "maquete' ao então Presidente Washington Luis e seu Secretário Alarico Silveira, surgiu a promessa que o projeto se tornaria uma realidade.

Imediatamente, organizou-se uma comissão composta por Menotti Del Picchia, Monteiro Lobato e Oswald de Andrade, que ficaria incumbida de tomar as providências necessárias para que a idéia vingasse.

 

Surge, no entanto, um obstáculo. A colônia portuguesa queria igualmente prestar a sua homenagem à cidade de São Paulo, sendo que para tanto indicou o escultor português Teixeira Lopes.

 

Divergiram as duas facções e o projeto foi adiado.

 

Em 1930, Washington Luis é deposto, e com ele "morre" o projeto.

 

Em 1932, Armando de Salles Oliveira toma a liderança do Estado de São Paulo e novamente o projeto se reaviva. O próprio governante incumbe Cassiano Ricardo de tomar as providências necessárias.

 

Em 1937, o golpe de Estado e novamente o monumento abandonado, sendo que somente algum tempo depois os trabalhos foram reiniciados.

 

Finalmente, após superar todas as dificuldades existentes, Brecheret consegue ver inaugurado o seu monumento, hoje cartão postal da nossa cidade e orgulho dos paulistas.

 

Uma obra monumental, quiçá escultoricamente uma das maiores de que se tem notícia, sintetizando a marcha das bandeiras, bem como a trajetória artística de Brecheret, pois ali se encontram as marcas de todas as suas fases, desde o academismo, o requinte francês e a sua fase indígena-marajoara.

 

O branco, o negro, o índio e o mameluco figuram na grandiosa marcha empreendida pelo nosso Estado, sendo o Monumento "puxado" por dois índios a cavalo, em direção ao Pico do Jaraguá.

 

Se o Monumento percorreu uma estrada de 33 anos, não menos árdua foi a estrada percorrida por Brecheret para imposição da sua arte.

 

Em 1913, após esgotar seu aprendizado em São Paulo, viaja para Roma e lá permanece até 1919, conhecendo de perto as dificuldades de uma guerra, o que não o impede de despontar para o mundo artístico, ainda que numa Europa conturbada e extremamente avançada para os padrões brasileiros.

 

Após uma permanência de cerca de dois anos, em 1921 Brecheret retorna à Europa, desta feita para Paris, pensionado pelo governo, para de lá retornar definitivamente somente por volta de 1936, sem entretanto ter esquecido o seu primitivo projeto do monumento.

 

Grande sua capacidade de trabalho, bastando lembrar que a partir de 1942 Brecheret "tocava" dois monumentos, Bandeiras e Caxias, este último também palco de uma epopéia, haja vista que a sua inauguração somente ocorreu cerca de 20 anos depois, sem que o artista tenha visto o seu trabalho final.

 

Nem mesmo essas duas obras impediram-no de embelezar a cidade, pois são dessa época o Fauno (parque Siqueira Campos), Graça I e Graça II (Galeria Prestes Maia), Depois do Banho (Largo do Arouche), etc.

 

Curiosa a trajetória de Brecheret. Vence primeiro na Europa, o que lhe valeu, entre outras coisas, a Legião de Honra do Governo Francês, em 1934, para depois ser aceito em seu país, o que constitui um fato inédito, inclusive entre seus contemporâneos.

 

Aliás, é mister ressaltar que a importância de Brecheret não se restringe à Semana de 22, como erroneamente é colocado. Certo que sua participação na referida semana foi decisiva para o seu sucesso, pois: "Fica claro, nos vários depoimentos dos principais participantes que, no que toca às artes plásticas, só foi possível a realização desta Semana devido à alta qualidade da obra de Victor Brecheret. Todas teorias valem, desde que existam obras para justificá-las" (2).

 

Mas, da mesma forma que a sua participação na Semana de 22 foi decisiva, não menos relevante é sua obra, como um todo, e em específico o Monumento às Bandeiras, visto que "isto se demonstra justamente no que reputamos como uma das maiores obras-primas do nosso século, dedicada ao trabalho do homem, isto é, ao moderno bandeirante sem os quais não existiriam cidades como São Paulo, que é o Monumento às Bandeiras onde a muralidade supera os limites de 'figuratividade'. Este enorme 'mural' plástico, se nos permitíssemos esquecer por um momento de classificá-lo como tão simplesmente a maior escultura do mundo, é uma das mensagens sociais mais verdadeiras e palpitantes da arte sul-americana, a ponto de ofuscar a retórica temática dos murais de Siqueiros, e ao qual todos os trabalhadores-bandeirantes do mundo deveriam levar guirlandas de flores" (3).

 

Não foi o monumento uma obra de fácil compreensão. E Brecheret sabia. Mas sua integração com a obra foi de tal ordem, que certa feita declinou o artista: "Direi, plagiando Cassiano Ricardo, que os bandeirantes foram feitos para mim, assim como fui feito para os bandeirantes" (4).

 

Trinta anos passados, e o mesmo arrojo de concepção e luta continuam convivendo com esta obra monumental, que não é apenas o símbolo da nossa cidade, mas a imagem permanente da grande marcha que nunca parou.

 

Ali se encontram todas as suas experiências e conclusões, desde o traço acadêmico, absorvido certamente de seu aprendizado em Roma, com o escultor Dazzi, para depois encontrar a leveza e sutileza dos anos 20 e 30 de Paris, onde, sem dúvida alguma, alcançou o ponto maior da sua obra.

 

E é nessa Paris dos anos 20 e 30, entre outros 40 mil artistas estrangeiros, que Brecheret se impõe, haja vista suas premiações, sem nos esquecermos da alta qualidade artística reinante.

 

Os seus volumes e a luz que sempre foram uma preocupação estão igualmente presentes no monumento, o que foi de certa forma uma característica sua. Era um artista monumental, pois preocupou-se basicamente com a obra de rua, típica do escultor, sem no entanto abandonar o chamado artesanato, onde, como dizia o artista, moldava os "seus bonecos".

 

A presença indígena constitui fato marcante na sua obra, onde, perfeitamente integrado aos tipos da terra, ressalta com toda força e pujança a figura do índio. Este ocuparia um capítulo à parte na sua obra, haja vista que já o houvera retratado na I Bienal de 1951, quando saiu vencedor com a obra "O índio e a suassuapara", que poderíamos definir como um semi-figurativo ou semi-abstrato.

 

 

Em resumo, como disse certa feita o poeta:

 

"A última bandeira parte da clareira do Ibirapuera.

Homens levam a rosa dos ventos tatuada nos gibões, e botas principiam a tingir-se de distância.

Os noivos do horizonte

penetram a dimensão do sonho.

Mestre-de-Campo Victor Brecheret comanda

seus mamelucos de granito.

Abre-se o ciclo da imortalidade" (5).

 

(1) "Brecheret 60 anos de Notícia", 1977, Cia. Melhoramentos, pág. 111 - Sandra Brecheret Pellegrini.

 

(2) "Jornal da Tarde", de 17.01.83, pág. 25 - Jacob Klintowitz.

 

(3) "Obra-Prima do Masp no Sesc", 1980-81 - Giuseppe Cantelli, professor da Universidade de Siena.

 

(4) "Brecheret 60 Anos de Notícia", ob. cit. pág. 113.

 

(5) Paulo Bonfim, In ob. cit., pág. 171.