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Arte Carregada de Vida e Elegância Nos 50 anos de sua morte, o escultor Victor Brecheret pode ser revisitado em várias de suas obras que a cidade acolhe Marcia Camargos Enquanto as barricadas pós-modernas reeditavam em paris as revoltas populares do século 19, iam passando quase despercebidas, entre nós, as comemorações que encerram o Ano Brasil-França. O Salão de Outono, por exemplo, realizou em outubro uma retrospectiva de Victor Brecheret expondo 15 de seus bronzes. Dez dias depois, as peças transferíram-se para a Galeria Espace Quadra e lá permaneceram até o final de novembro.Vistas por mais de dez mil pessoas, marcaram o retorno do artista ao espaço onde, em 1921, ele pisou pela primeira vez para exibir Les Conquérants. Impregnada ainda das heranças formais de Rodin, Dazzi e Mestrovic, a maquete em gesso remetia à temática do Monumento às Bandeiras, incluindo a barcaça das monções e a figura da Vitória, mas substituindo os cavalos por bois e acentuando o hermetismo da alegoria com uma torre. Brecheret, que morreu a exatos 50 anos, exporia naquele prestigiado salão durante os setes anos de sua estada em Paris, cidade em que aportou seguro e encorajado pelos amigos modernistas. Para compreender a ligação do escultor com os festejados salões de arte franceses há que se retroceder no tempo e na história. Mais precisamente a 1912, quando Brecheret iniciou o aprendizado no Liceu de Artes e Ofícios, curso noturno, para ganhar a vida vendendo calçados em uma loja da Rua Florêncio de Abreu. Com o incentivo dos mestres do Liceu, partiu para Roma em 1913 e, aos 18 anos, tornou aluno de Arturo Dazzi, o escultor predileto do Rei Vitório Emanoel III. Sobrevivia a duras penas, graças ao apoio de uma velha tia, do escultor Francisco Leopoldo e Silva e do diplomata Souza Dantas. Nessa época, interessou-se pelos caminhos apontados por Michelangelo e por Rodin, que forjariam as bases clássicas de sua formação. De volta ao Brasil ao final da 1ª Guerra, Brecheret não foi imediatamente incorporado ao circuito sociocultural da Paulicéia. Solitário e arredio, trabalhava no Palácio das Indústrias ainda em construção, em sala cedida por Ramos de Azevedo, antigo conhecido dos tempos do Liceu. Seu isolamento terminaria quando Di Cavalcanti, Hélios Seelinger e Oswald de Andrade foram ao local conferir as maquetes do concurso do Monumento ao Centenário da Independência, a ser erguido defronte o Museu do Ipiranga. Ao saberem da existência do escultor, os três subiram ao ateliê improvisado dispostos a caçoar daquela figura de nome afrancesado. Acreditando tratar-se de mais um a produzir obras de ritmo mole e adocicado das tão admiradas academias, ficaram desnorteados diante de grandes e bizarras estátuas misteriosas e solenes. Imediatamente levaram a estandarte do grupo o escultor festejado por Mário de Andrade e Monteiro Lobato, que viu nele solidez e convicção do artista moderno que não pode ser um mero "ecletizador" de modelos ultrapassados.Na Revista do Brasil de fevereiro de 1920, Lobato registraria que suas criações Ídolo e Eva carregavam "a vida, o movimento, a elegância da linha, a força da concepção e, sobretudo, esse misterioso quid que é a alma perturbadora das verdadeira obras d'arte". Apesar da personalidade retraída e instropectiva, Brecheret foi instado a dar a própria contribuição aos festejos do centenário da Independência apresentando o já mencionado projeto do Monumento às Bandeiras, tema sugerido por Menotti del Picchia. Não deu certo. Apoiado pelo deputado e mecenas Freitas Valle, o siciliano Ettore Ximenes venceu com uma proposta tachada por Mário de Andrade de "colossal centro de mesa de porcelana de Sèvres". O que parecia um revés na carreira do artista acabou convertendo-se em bônus, pois como uma espécie de compensação, ele recebia uma bolsa de estudos paga pelo Estado, através do Pensionato Artístico. Em junho de 1921 Brecheret partia de novo rumo ao Velho Continente, após vender Eva à Prefeitura para enfeitar os jardins remodelados do Vale do Anhangabaú. Deixou também 12 esculturas e alguns desenhos que seriam expostos no saguão do Teatro Municipal na Semana de Arte Moderna, incluindo a Cabeça de Cristo, de trancinhas, suscitando polêmica e escândalo entre os visitantes. Antes da viagem, doou ao governo a maquete em gesso que, encaminhada à Pinacoteca do Estado, fragmentou-se de modo irrecuperável na mudança da Rua 11 de Agosto, endereço provisório do museu desde 1933, para o edifício da Avenida Tiradentes. Instalado em Paris, Victor Brecheret permaneceu recluso. A partir de 1923, integrando-se ao ambiente cultural pelas mãos dos brasileiros que desembarcavam na Cidade Luz, ele abriria novo ciclo em sua arte. Buscava fundir, de maneira, muito pessoal, a ênfase do volume geométrico da escultura cubista e da pintura de Léger, o tratamento sintético da estrutura dado pelo escultor romeno Brancusi e por Maillo, bem como a estilização elegante do art déco. A convergência dessas matrizes pode ser percebida em Tocadora de Guitarra, que reduz o naturalismo das obras anteriores, abrindo mão da dramaticidade, da anatomia carregada de músculos em troca do expurgo e do despojamento, com certo toque de arte oriental soprando das possessões francesas na Indochina para infiltrar-se na moda, no teatro e na decoração. Resumindo essa fase, no final do ano expôs no Salão de Outono Mise au Tombeau, no projeto Um Parque, desenvolvido por um conjunto de artistas coordenados pelo arquiteto Mallet-Stevens. Concebida em formas lineares simplificadas de forte cunho ornamental, é tida como uma das obras mais destacadas de seu período francês. Sobressaindo entre os 28 escultores selecionados, a serenidade hierática das personagens e a graça discreta das figuras empolgaram a crítica parisiense e o público do salão. também encantou Olívia Guedes Penteado, em visita ao seu ateliê da Rue Vercingétorix, 52. Por isso, em carta à Mário de Andrade, em 14 de maio de 1924, pede para ele colocar "um pouco de fogo de encorajamento" na amiga comum e sugere no seu português peculiar: "Vê se você ou por meio de Tarsila, animem ela a decidir, para mim seria uma grande coisa neste momento, e assim a ela também que seria uma verdadeira obra de arte que se faria no Brasil." O apelo surtiu efeito e o conjunto acabaria transpondo o Atlântico em direção aos trópicos, destinado ao jazigo da família de Dona Olívia, no Cemitério da Consolação. Ainda em Paris, Brecheret realizaria, por encomenda de Freitas Valle, uma escultura para o túmulo de Francisca Júlia. Batizado por Menotti del Picchia de Musa Impassível, soneto da poetisa parnasiana, o magnífico mármore branco com 2,80 metros de altura.Vale uma visita ao Cemitério do Araçá para celebrarmos o gênio de Brecheret nos 50 anos de sua morte. Marcia Camargos, coordenadora do Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca e autora de Villa Kyrial, crônica da belle époque paulistana, de Semana 22, entre vaias e aplausos e de Micróbios na Cruz entre outros, finalizou pós-doutorado no IEB/USP sobre os bolsistas do Pensionato Artístico (1912-1930) na Europa. Serviço Pinacoteca do Estado. Praça da Luz, 2. Fone: 3229-9844. De terça a domingo das 10 às 17:30h. R$4,00 (grátis aos sábados) As três letras que restam José de Souza Martins
O silêncio da tarde fica maior na solidão da solidão daquelas três letras que restam do nome de Francisca Julia da Silva (1871-1920), um dos maiores de nossa poesia. É como se, ao roubarem a letras de bronze de seu túmulo, no Cemitério do Araçá, roubassem os ladrões a memória dessa mulher notável, poeta e musicista, que, modesta, recusou um lugar na Academia Paulista de Letras. não só eles. Dois anos depois de sua morte, na Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade fez restrições à sua poesia. Seu lirismo era o indesejável passado daqueles passadistas disfarçados, que ao rebuscarem as raízes de nossa identidade, na áspera linguagem do futuro, perdiam-se nas formas sem encontrar o presente. A tumba foi mandada construir pelo governo de São Paulo, por lei de autoria do deputado Freitas Valle, patrono das tertúlias da Vila Kyrial e da cultura do simbolismo. Seu amante, dizem os maledissentes. Sobre a campa ergue-se a intrigante escultura em mármore, de Victor Brecheret (1894-1955), uma das primeiras, ainda distantes das formas definitivas de seu estilo. Mas a cabeça de musa impassível, alusão a um poema de Francisca Julia, sugere formas que logo se cristalizariam na obra do escultor. Deixo-me ficar, pensativo, naquele canto sem pompa, o olhar preso na escultura. "Tinha ela os seios pontudos?" - pergunta um dos meus alunos." - Que importa?" - penso comigo mesmo. "Provavelmente, Brecheret quis destacar alegoricamente a beleza da pessoa e da alma de Francisca Julia" - esclareço sem esclarecer. A pessoa simples e sua poesia. Nascida em Xiririca, hoje Eldorado, casou com um telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil, Filadelfo Edmundo Munster, em 1909, na capela do Lajeado, zona leste, região da estação de Guaianases, simbólica periferia. A quase roça que conheci, menino, quarenta anos depois. Tento decifrar aquela obra de Brecheret, a postura sensual da mulher cheia de vida e ardor, mais expressão das convicções estéticas simbolistas do patrono do túmulo, Freitas Valle, do que do rigor da forma e das palavras na poesia parnasiana da poetisa. Naquele tempo de duplicidades e transições, o estético e o vivencial contrapunham seus enigmas. Não é assim ainda hoje? Medito sobre os femininos versos de Rústica, tão isso e tão ela: "Pegando da costura à luz da clarabóia, / Põe na ponta do dedo em feitio de adorno, / O seu lindo dedal com pretensão de jóia." Morreu-lhe o marido de tuberculose em 31 de outubro de 1920. Ainda no velório, declarou ela que não pretendia vestir o véu de viúva. Fechou-se no quarto e tomou uma overdose de narcóticos. Foi sepultada no Dia das Almas. Noite, abandono e silencio sobre a terra fria do Araçá. Mas na poesia o quase testamento "Em noite assim, de repouso e de calma, / É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas, / A alma cheia de dor, a dor cheia de alma.../ É que a alma se abandona ao sabor dos enganos, / Antegozando já quimeras pressentidas / Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos." José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP.
Exposição em Valência, Espanha, - IVAN - Brasil 1920-1950 - Da Anatropologia a Brasília, Instituto Valenciano de Arte Moderna, 2001. Texto referente ao Monumento às Banseiras no livro de autoria do professorRodrigo Gutiérrez Viñuales, da Universidade de Granada, Espanha, denominado "Momento comemorativo y espacio publico en Iberoamerica"
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